As verdades secretas de Marieta Severo

Na última sexta-feira (25), Walcyr Carrasco pontuou uma das tramas mais comentadas do ano, a térmica Verdades Secretas. Com o calor retratado de forma áspera e discordante, o autor presenteou atores novos e consagrados da televisão com papéis, os quais não tinham a missão de emocionar, mas de chocar. O texto não era puro, mas gritante. Algo raro à principal emissora do país, que fez o certo em deixá-lo ousar de todos os jeitos linguísticos, simbólicos, reais e ficcionais. Fanny Richard, personagem de Marieta Severo, pode ilustrar o texto termal do novelista como ninguém.
Antes mesmo de a história começar, a atriz caracterizava o papel como “amoral”. Uma mulher que, a princípio, não sabia lidar com sentimentos. O foco era o sucesso, o dinheiro e a juventude eterna. Até o questionável Book Rosa (termo dado à prostituição no universo da moda) fazia parte da construção de Fanny, a qual a deixava ainda mais densa, vil e torpe. Algo inesperado para o público, que passou 13 anos enxergando Marieta como a matriarca de bom coração, Irene “Nenê” Souza da Silva, de A Grande Família.
Entretanto, a esposa de Lineu Silva (Marco Nanini) saiu de cena para dar espaço à mulher de Anthony Mariano (Reynaldo Gianecchini). Em Verdades Secretas, ele era um modelo com o “fracasso” no sobrenome. Também apaixonado por dinheiro, enxergava em Fanny a oportunidade ideal de unir o prazer – fama e sexo – à vaidade. Ela, sempre preocupada em mantê-lo ao lado, assinava cheques e entregava quantias em espécie para garanti-lo na cama, no coração e na vida. Um relacionamento enganoso, mas de outras épocas.
Digo isso, porque os dois marcaram o início dos anos 2000, em outros papéis. Como tia e sobrinho, Marieta e Giane, eram familiares na icônica Laços de Família, de Manoel Carlos. Alma Flora Pirajá de Albuquerque Menezes tinha um viés parecido com o de Fanny Richards. Ambas eram inquisidoras, manipuladoras e preocupavam-se com dinheiro. Cada qual, de uma forma, mas elas podiam ser ao menos primas de terceiro grau, no currículo da atriz. Outro ponto em comum foi a traição que elas sofreram por parte de seus cônjuges. Em ‘Laços’, Alma foi passada para traz, pelo marido Danilo (Alexandre Borges); em ‘Verdades’, a dona da agência de modelos foi traída duas vezes por Anthony. Uma bagagem difícil de embarcar no aeroporto da vida.
A Comédia da Vida Privada (1995 – 1997), Pátria Minha (1994), Deus nos Acuda (1992), Que Rei Sou Eu? (1989), Tarcísio e Glória (1988), Ti Ti Ti (1985), Vereda Tropical (1984) e Champagne (1983) são alguns dos trabalhos de Marieta Severo na televisão. Cada personagem foi moldado de um jeito e conforme a época, porém eles fazem parte das verdades secretas da atriz. Assim como os quase 40 filmes em que atuou, entre eles, Society em Baby-Doll (1965 e primeiro longa que participou), Leila Diniz (1987), Carlota Joaquina, Princesa do Brazil (1995), Castelo Rá-Tim-Bum, O Filme (1999), Janela da Alma (2001), A Dona da História (2004), Cazuza – O Tempo Não Para (2004) e Quincas Berro D’Água (2010).
Nos últimos 50 anos, Marieta também participou de cerca de 30 peças. Começou em Feitiços de Salém (1965) e, teve como a mais recente, Incêndios (2014). Seja no teatro, no cinema ou na TV, o brilho pela arte cênica dissipa-se em todo e qualquer ambiente onde a atriz pisa. O olhar fugaz, sem nenhuma inércia, eloquente e térmico de paixão, sai dos escombros secretos do interior dela para ganhar forma às vistas de um público sempre sedento de Marieta Severo.

Na trama das 23 horas, de Carrasco, ela sanou a saudade do brasileiro de tê-la de volta às novelas. Dona Nenê era um retrato da clássica mãe zelosa que guardava para si, segredos e desejos de arriscar-se em um mundo fora dos cômodos de casa. Ao longo dos 13 anos de A Grande Família, ela pode mostrar isso de forma sutil. Soube dar asas à mulher que era esposa, mãe, avó, trabalhadora e dona dos próprios sonhos. Foi um encanto poder acompanhar essa transformação, e mais primoroso ainda em vê-la com outro viés, na pele de Fanny Richard.
Não sabe-se como foi a infância e nem a juventude da personagem – pelo caráter, presume-se difícil –, mas Marieta tinha o sonho de ser bailarina clássica. Aos 16 anos mudou de ideia para aventurar-se no teatro. E, desde então, agradecemos por isso. Estreou na Globo, em 1966, como uma princesa árabe, em O Sheik de Agadir, de Glória Magadan. Criticou abertamente o regime militar, em 1968, no musical Roda Viva, de Chico Buarque. Ficou casada com ele por 33 anos e teve três filhas: Helena, Luísa e Silva Buarque.

Perfeitamente capaz de se posicionar politicamente, e como sempre o fez, recentemente, em pleno programa do Faustão, ao vivo, na Rede Globo, e da forma elegante que lhe é natural, Marieta se declarou otimista sobre o Brasil apesar da atual crise e defendeu os avanços dos últimos anos em favor da inclusão social.
Nas palavras do diretor Newton Moreno, o Brasil passou a ser outro com Severo. “Ela se tornou um fomento para uma nova dramaturgia nacional, encomendando ou dando visibilidade a muitos textos. Assim, nestes 50 anos (de carreira), Marieta ajudou o Brasil a se ver em cena. Seja um Brasil suburbano, periférico, sertanejo, trágico ou festivo”, ressaltou o respeitável diretor, ator e autor da escrita teatral brasileira.
Apaixonadas pelos palcos, as atrizes e amigas, Marieta Severo e Andréa Beltrão realizaram um sonho e juntas fundaram o Teatro Poeira. O espaço para espetáculos e estudos que hoje reluz em Botafogo, no Rio de Janeiro, é fruto de um projeto iniciado em 2004 e por elas, minuciosamente, trabalhado.
Como nota-se, Marieta da Costa Severo é uma mulher de muitas verdades, porém de poucos segredos. Ela tem a arte como profissão e meio de revelar às pessoas aquilo que pode chocar, ao mesmo tempo em que, ajudar a ver a dramaturgia de modo que ultrapasse a utópica ficção existente por de trás das câmeras. À frente dos olhos, ela inspira; dentro dos estúdios, respira-se a boa atuação; no palco, emociona com palavras carregadas por uma bagagem de cinco décadas de arte; e no cinema, prende o telespectador de maneira instantânea.
Diferente da intérprete, Fanny Richard terminou abandonada pelo Anthony, mas acompanhada de um novo rapaz que ocuparia o lugar dele no trabalho de “destruí-la” – em amplos sentidos –, como a própria personagem gostava de dizer. Não foi denunciada pelo Book Rosa, não perdeu dinheiro e nem precisou descer do salto. Teve o coração dilacerado, mas isso permaneceu oculto à ela, já que sentimento não paga conta e, às vezes, pode ser pior do Imposto de Renda na vida de uma empresária. Em uma das últimas cenas, em um olhar trocado com Angel (Camila Queiroz), ficou claro que ela ensinou a aprendiz de Maquiavel a manter as verdades certas, no local mais secreto possível.