Por que o diretor de ‘Fogo Contra Fogo’ aponta ‘South Park’ como a resistência política de hoje?
Se você pedisse a alguém para descrever a resistência política e cultural dos anos 1960, imagens de Woodstock, protestos em massa e figuras como Bobby Kennedy viriam à mente. Agora, pergunte a Michael Mann, o lendário e meticuloso diretor de clássicos como ‘Fogo Contra Fogo’ (Heat) e ‘O Último dos Moicanos’, qual é o equivalente em 2025.
A resposta dele? ‘South Park’.
Em uma declaração que está repercutindo, feita durante o recente Lumiere Festival em Lyon, Mann sugeriu que, hoje, “a vanguarda e a resistência estão em ‘South Park'”. Em um mundo pós-streaming, fraturado por bolhas ideológicas e dominado por uma mídia avessa ao risco, essa afirmação não é apenas um elogio a um desenho animado; é um diagnóstico profundo e desconfortável sobre o estado da nossa cultura.
A Comparação Inesperada: Anos 60 vs. Comedy Central
A análise de Mann traça um paralelo direto com um dos períodos mais turbulentos da história americana. “O que está acontecendo agora é como os anos 60 na América, em certo sentido”, afirmou o diretor. “Exceto que a vanguarda e a resistência hoje estão em ‘South Park’.”
Vindo de um cineasta conhecido por seus dramas criminais sombrios e um realismo quase documental, a escolha de um desenho satírico como o bastião da contracultura moderna é, no mínimo, surpreendente. Mann essencialmente argumenta que, enquanto os anos 60 tiveram uma revolução popular nas ruas, na música e na política, a batalha ideológica mais proeminente de hoje está sendo travada… por Cartman, Stan, Kyle e Kenny.
Mas por que Mann, um dos diretores mais sérios de Hollywood, apontaria especificamente para esta série animada de 28 anos? A resposta está naquilo que ‘South Park’ decidiu deixar de ser.
O Fim do Cinismo e o Início da Sátira Direta
A afirmação de Michael Mann não surge do nada. Os criadores de ‘South Park’, Trey Parker e Matt Stone, abandonaram há muito tempo o cinismo centrista que marcou época, encapsulado no famoso episódio “Douche and Turd” (Babaca e Sanduíche de Merda), que essencialmente argumentava que ambos os lados da política eram igualmente ruins.
Nas últimas temporadas (especialmente 27 e 28), o show mudou de tom. A sátira agora é direcionada, mirando diretamente no atual Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e seus seguidores, chegando a usar o nome “Donald ‘Saddam Hussein’ Trump” em sua continuidade.
Essa mudança de uma crítica que atirava para todos os lados para uma sátira focada e implacável não passou despercebida. O show enfrentou a ira pública da Casa Branca e campanhas de boicote de fãs conservadores exigindo seu cancelamento pela Paramount.
Em uma era onde muitas propriedades intelectuais e estúdios evitam controvérsias para não alienar parcelas do público, ‘South Park’ parece ser a única grande franquia de entretenimento disposta a cutucar o vespeiro federal com tanta intensidade. Como apontado pela mídia que cobriu a fala de Mann, nem mesmo os talk shows de late-night, como o de Jimmy Kimmel, atingiram o governo com a mesma ferocidade, apesar das tentativas de silenciamento por parte da FCC (Comissão Federal de Comunicações) de Trump.
O Elogio que é Também uma Crítica Feroz
Aqui está o ponto crucial da análise de Michael Mann: se ‘South Park’ é a vanguarda, o que isso diz sobre todo o resto?
O elogio do diretor ao desenho é, simultaneamente, uma crítica contundente à ineficácia da resistência política e social “real”. Mann parece sugerir que, enquanto Parker e Stone estão na linha de frente cultural, os líderes políticos que deveriam organizar a oposição estão falhando drasticamente.
Na ausência de uma figura unificadora ao estilo Bobby Kennedy, que consiga canalizar o sentimento anti-governo em ação organizada e eficaz, temos apenas uma campanha sendo travada na Comedy Central. A sátira se torna a principal forma de resistência quando a resistência formal parece perdida ou inepta. É relativamente facil notar que, enquanto ‘South Park’ ataca, figuras como o líder da minoria no Senado, Chuck Schumer, parecem mais focadas em “se tornar correspondentes de Donald Trump” do que em liderar uma oposição de fato.
Precisamos de Mais do que Apenas Sátira?
A análise de Michael Mann é um reconhecimento da coragem de ‘South Park’ em um cenário de mídia cada vez mais subjugado e temeroso. No entanto, ela também serve como um alerta profundamente desconfortável para 2025.
Por mais brilhante, necessária e catártica que seja a sátira, ela não deveria ser a única barreira entre uma sociedade democrática e o autoritarismo. Se a situação é realmente “como os anos 60 de novo”, a história nos ensina que apenas a contracultura não é suficiente. Movimentos de base, organização e ação política real são necessários para mudar o rumo das coisas.
Como Eric Cartman provavelmente diria, vamos precisar de mais do que “hippies preguiçosos e fedorentos” para salvar o planeta desta vez. A questão que a fala de Mann nos deixa é: se os comediantes são os soldados mais corajosos, quem exatamente está liderando o exército?




