Precisamos falar sobre gordofobia

Era um fim de semana de piscina, como outro qualquer. Kate (Mackenzie Hancsicsak), aos 9 anos, usava um biquíni como de qualquer outra criança da mesma idade – talvez mais engraçadinho, mas só isso. Até que, após horas sem conseguir se enturmar, a menina recebe um bilhetinho escrito pelas colegas: “Nós temos vergonha de você”. Kate, então, se isola, triste, e coloca uma camiseta para esconder a barriga.
Mais tarde, por volta da mesma idade, ela se sente envergonhada quando percebe que a numeração de sua roupa é maior que de sua mãe – mãe essa que é linda e magra (ou linda por que é magra?). Na geladeira, sua comida é diferente da dos irmãos – em quantidade, em nutrientes, em sabor.
Num pulo maior de tempo, os quilos saíram do controle e bilhetes pregados em todos os cantos da casa, com dizeres como “o que há de errado com você?”, tomam conta da vida de Kate (Chrissy Metz), agora com 36 anos. Não é mais uma questão de bullying ou de não poder comer algo em determinado momento. É questão de cada segundo de sua vida girar em torno do seu peso. De sua gordura. De como ela é diferente dos outros porque é gorda. De se privar de comida, de vida social, e até de vida amorosa porque, afinal, “quem vai amar alguém com essa aparência?”

A história e fatos em questão aqui são fictícios e retratam a vida da personagem (e uma das protagonistas) de This Is Us, sucesso da NBC (em sua primeira temporada, mas já garantida até a terceira). O problema é que esse cenário de ficção retrata fielmente a vida de diversas pessoas, especialmente mulheres, que aprendem que existe uma aparência ideal – magra! – e, caso você não se encaixe nesse modelo, você é um problema. Isso mesmo! Pessoas com sobrepeso são discriminadas simplesmente por terem mais gordura corporal que outras.
E, em uma época onde muito se reclama que a sociedade está ficando mais chata e cheia de mimimis, é preciso dizer em alto e bom tom que isso, meus amigos, é gordofobia! E nós precisamos falar sobre gordofobia, porque ela mata. Mata jovens que se suicidam, mata mulheres e homens que enfrentam cirurgias invasivas para atender a um padrão irreal de beleza e vários outros exemplos que poderia citar aqui.
Imagine conviver com um rótulo extremamente prejudicial pra sua autoestima, ouvir comentários sobre o tamanho do seu corpo, sobre o quanto você come, sobre quantas dietas você deve fazer, sobre exercícios que deve tentar, e mil e uma receitas milagrosas para deixar de ser o que você é? Eu não consigo me lembrar de um só momento da minha vida em que eu não tenha sido julgada por ser gorda. De ser lembrada que o MEU corpo é errado e que precisa ser consertado urgentemente. E, ainda pior, ver que esse preconceito vem disfarçado de preocupação, inclusive de desconhecidos: “toda essa gordura vai prejudicar sua saúde”. Por acaso você é médico para dizer como está minha saúde?
Viver em uma sociedade extremamente gordofóbica é sufocante. Ser gorda é ser motivo de risada, é não se sentir representada, é perceber olhares desconfortáveis, escutar coisas do tipo: “Se ela não fosse gordinha…” O problema é que sou, e não é um problema meu. Não ha problema em ser quem sou, o problema está em quem julga não ser o normal, o que não esta dentro do padrão imposto a elas.
O interessante aqui é que as pessoas me enxergam em todos os lugares, mas eu não me vejo em canto nenhum. Quase não há representação de mulheres gordas que não sejam estereotipadas ou ridicularizadas na TV, no cinema, e nos livros. (Note que o “quase” só existe porque agora o cenário começa a mudar muito devagar)
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, cerca de 30% da população do nosso planeta convive com as gordurinhas que tanto incomodam as pessoas. São 1.9 bilhão de gordos no mundo. E mesmo assim, somos vistos como um problema para uma sociedade cheia de padrões.
zExagero? Alguns dizem que sim. Que vejo gordofobia em todos os lugares e que provavelmente eu interpretei a coisa toda de modo errado. Será? Vou contar uma historinha que aconteceu recentemente. Quem me conhece sabe o quanto eu esperei por Gilmore Girls: A Year in the Life. O revival da Netflix era para ser um evento especial, no qual eu iria rever meus personagens preferidos. Até que em uma cena, do nada, sem nenhum motivo aparente, a câmera mostra um homem gordo usando trajes de banho em uma festa na piscina. Risos. Rory e Lorelai fazem caretas e tentam não olhar para a figura em sua frente. Mais risos. As duas fazem uma piadinha sobre o peso dele. Pronto, o alívio cômico que o episódio Summer precisava em sua introdução. A cena é totalmente desnecessária, desrespeitosa e absurda.

Body Shaming. Fat Shaming.
————–
Felizmente, hoje temos Kate (Chrissy Metz), uma versão fiel do que é ser gordo. Crescer gordo. Viver gordo. Felizmente, temos uma atriz que foge desses padrões, representando situações pela qual ela provavelmente passou, conquistando o público e críticos com uma grande atuação (tendo, inclusive, sendo indicada ao Globo de Ouro) e esfregando na cara de todos que gordos também podem ser atores. Atores dramáticos. Nada de piada.
Fora ela, só consigo lembrar de duas personagens relevantes para o tema. Uma é a Rae Earl, de My Mad Fat Diary, uma adolescente que sofre com depressão e ansiedade e sua autoestima é inexistente, pois ela é gorda. Foi a primeira vez que me senti representada de forma correta, pois as experiências da Rae lembravam as minhas próprias sendo a “amiga gorda” da turma, aquela que sempre era rejeitada e queria ser invisível, pois a dor de saber que não se encaixa num padrão absurdo era grande demais. Outra personagem é a Eleanor de Eleanor & Park.

Todas as outras que me vem à cabeça são sempre “A” piada, o alívio cômico da história ou a personagem que vai viver um makeover e ficar magra, já que é isso que a sociedade quer. Seja magra, pois se você não for magra você não é bonita e você não vale à pena.
É preciso que a gente fale sobre gordofobia abertamente e incessantemente. Eu não quero mais ver na TV, no cinema, nos livros, nas revistas, nas propagandas que o meu corpo é errado, nojento e feio. Eu superei todos os anos de bullying e autoestima inexistente graças ao feminismo, mas ainda carrego dentro de mim as cicatrizes das lembranças de todas as vezes em que eu me odiei simplesmente por ser gorda.
Ser gorda numa sociedade extremamente gordofóbica é ser lembrada todos os dias que nosso corpo é a piada, é rejeitado e que devemos ser invisíveis. Mas não importa quantas pedras joguem em nós, continuaremos resistindo.