Precisamos falar sobre trans

“Eu tive momentos muito obscuros na minha vida. Estive em casa com uma arma e disse ‘vamos acabar com isso, sem mais dor, sem mais sofrimento’. Essa luta é real e eu estive lá”.
Estas palavras de Caitlyn Jenner, socialite e ex-atleta – recordista olímpica – norte-americana, expressam a dor e o sofrimento de milhares de transgêneros mundo afora. Estigmatizadas, invisibilizadas e muitas vezes humilhadas, pessoas trans são líderes de diversas estatísticas negativas, como abandono da escola. São também as maiores vítimas de homicídio e suicídio, quase sempre causado por preconceito.
Transgêneros são pessoas cuja identidade de gênero é diferente daquela atribuída ao gênero que lhes foi designado no nascimento, ou seja, eles não se identificam com o gênero no qual nasceram e se sentem estranhos em seus próprios corpos. Geralmente pessoas trans conseguem identificar essa condição ainda na infância, mas nem sempre conseguem ser fortes o suficiente para se expressar de acordo com o que sentem. Isso significa que muitas vezes os transgêneros passam a vida na invisibilidade e quando resolvem se mostrar ao mundo são vítimas de preconceito, ou para nomear corretamente, transfobia (aversão a transgêneros).
O Discovery Home&Health aborda muito bem a questão no reality documental I am Jazz, que retrata a vida de Jazz Jennings – uma adolescente transgênera que aos 14 anos foi eleita pela “Time” uma das adolescentes do mundo. Ela também é escritora e youtuber – seu canal possui mais de dois milhões de visualizações. Na série Jazz relata suas descobertas ainda na primeira infância – ela se identifica como menina desde os 2 anos – e retrata como uma família americana média lida com as transformações da filha. O tema é tratado com naturalidade e respeito.
Felizmente as coisas estão mudando, ainda que a passos lentos, e hoje a visibilidade de transgêneros na televisão norte americana é muito maior do que há algum tempo. É evidente que isso, por si só, não irá resolver os problemas desta população, mas é muito importante que eles estejam representados em todos os espaços, de maneira digna, pois só com representatividade é possível diminuir o sofrimento de crianças e jovens que se encontram nessa condição.
Séries dos mais variados gêneros estão abordando a questão e dando espaço para pessoas trans. Desde musicais teens como Glee até produções mais densas como Sense8, ou comédias como Faking It têm trazido a pauta à tona. E, o mais importante, é que a temática tem sido tratada corretamente, com pesquisa profunda e respeito à questão e aos indivíduos transexuais.
Não são apenas personagens transexuais que aparecem nas tramas. Atores e atrizes transgêneros também estão encontrando o seu espaço no showbiz. Prova disso é que séries ligadas ao tema e atores transexuais têm sido cada vez mais reconhecidos em premiações da indústria televisiva, como é o caso de Transparent (Amazon) que conquistou o prêmio de “Melhor Série de Comédia” no Globo de Ouro de 2015 e Laverne Cox, a primeira atriz transexual a concorrer ao Emmy.

“Obrigado por sua coragem. Obrigado por suas histórias. Obrigado pela inspiração”.
Apesar da entrega de Jeffrey Tambor na interpretação de Maura em Transparent, e das bonitas palavras proferidas no discurso de aceitação do Globo de Ouro, nem tudo são flores.
Mesmo sendo uma série aclamada pela crítica e por boa parte do público ela também gerou controvérsia. Ainda que a série tenha bastante sensibilidade e toque em pontos chave que precisam ser discutidos, como a utilização de banheiros públicos por pessoas transgêneros, alguns questionamentos acabam surgindo. Por que optar por um ator cisgênero e heterossexual quando existem tantas trans que poderiam desempenhar o papel? Como o ator bem enfatizou, estas são as SUAS histórias. Quando os transgêneros poderão ser protagonistas de suas próprias vidas e histórias?
Estas respostas parecem vir de Sense8 e Orange is The New Black. Ao contrário de Jill Soloway, diretora de Transparent, os irmãos Wachowski – especialmente Lana, que é transexual – fizeram questão que Nomi Marks fosse interpretada por Jamie Clayton, que também é uma mulher trans. Felizmente as produções com selo Netflix perceberam, ao contrário da Amazon, que já não dá mais para atores cisgêneros ganharem prêmios, notoriedade, dinheiro e fama às custas de uma minoria marginalizada, que no fim das contas acaba desempregada enquanto recebe esmolas vendo aquela maioria de sempre tomar seus lugares.
Possivelmente uma das diferenças em Sense8 é ver também um mulher trans em papel de criação. A Diretora da série possui essa vivência e pode falar com propriedade sobre o assunto.
“Há muitas pessoas que não têm voz. Eu me sinto tremendamente responsável aqui, pois eu tenho uma voz e há muitas pessoas trans que não tem essa mesma voz. (…) Eu tenho uma grande responsabilidade e espero acertar. (…) Essa é minha missão”.
Possivelmente Caitlyn Jenner seja hoje a maior porta-voz da comunidade transexual no mundo. O boom que ocorreu quando ela anunciou a transição foi grande, pois sendo membro de uma das famílias mais famosas do showbiz e presença constante no reality Keeping up With the Kardashians, Cait dialoga com outro público.
Isso fica evidente na primeira temporada de I am Cait. Muitas vezes Caitlyn dá alguma escorregada provocada pela vivência privilegiada que teve, pois apesar de ser trans ela vive em um meio de riqueza, portanto as dificuldades acabam sendo menores. Assim, o mais interessante do reality show do E! é aprender e crescer com Cait. É inegável o esforço e o amadurecimento da personagem na primeira temporada e ele deve continuar ocorrendo, visto que o programa foi renovado para uma segunda temporada. Assim que percebe seus equívocos Cait luta consigo mesma para se despir de qualquer preconceito internalizado que ainda tenha.
“Eu espero que eu esteja em uma posição de voltar atrás e apoiar essa comunidade”.
Finalizo esse texto com alguns desejos: que possamos ter a humildade de Caitlyn e voltar atrás caso seja necessário. Sempre é tempo de mudar e dar suporte a essa população tão marginalizada. Ainda que a nossa voz não ecoe como a de Jamie Clayton, Laverne Cox, Jazz Jennings ou Caitlyn Jenner nós precisamos nos levantar e falar, pois cada vez que nos calamos diante de uma opressão automaticamente escolhemos o lado do opressor.
Que venham muitas Jazz, Caits, Lavernes e Jamies. Que em breve, e cada vez mais, os transgêneros possam ser protagonistas de suas próprias histórias. Que possam falar e ser ouvidos. Que encham o showbiz e ocupem posições de destaque e merecidas, não apenas interpretando personagens secundários ou em séries de temática exclusivamente LGBT. Que o mundo – e a televisão – se pinte com as cores do arco-íris.