Precisamos falar sobre sororidade na TV (e na vida)

Ao longo da minha adolescência, que transcorreu nos saudosos anos 90, maltratei muitas meninas e fui maltratada por elas. Tive comportamentos dos quais não me orgulho, mas levei um tempo considerável para descobrir isso. Afinal, eu até gostava de bancar a menina malvada.
Demorei, mas coloquei a mão na minha própria consciência a fim de compreender o que me levava a fazer aquilo e o que levavam outras a fazer o mesmo. Há uma centena de variantes, que vão desde insegurança até se sentir ameaçada por outra garota.
A maioria dos produtos que nos entretém costuma dar preferência para essa tal de garota malvada que, geralmente, não passa de um estereótipo: a sempre linda, impecável, rica, rainha da panelinha e desejada pelos garotos. Esse tipo de personagem sempre é a razão de engatar boicotes contra outras garotas e ela não consegue lidar com atitudes parecidas que vêm ao seu encontro. É um “vamos botá-la em seu devido lugar” repetitivo que não representa uma conversa sobre sororidade, palavrinha mágica que passa longe desses comportamentos de menina/mulher para menina/mulher.
Não é de hoje que meninas e mulheres competem pela aparência, pelo quanto podem ostentar em um final de semana, para ver quem fala mais alto em um grupo e quem fisga o menino/homem mais desejado da sala/festa. Isso, se pensarmos em um âmbito mais pessoal.
Já no profissional, a rivalidade tende a se intensificar, às vezes tendo base atitudes da adolescência – seja de ataque ou de defesa. Um exemplo bem simples é a mulher na chefia não promover outra por intimamente reconhecer o talento e ver isso como uma ameaça. Em vez de enaltecê-la, ela a rebaixa, o que transmite a mensagem de que essa mulher não é boa o suficiente.
Vale mencionar a mulher que não se mistura em picuinhas e panelinhas e se torna alvo de piada no ambiente de trabalho – geralmente provocadas e alimentadas por outras mulheres do mesmo lugar.
Nesse redemoinho, ainda há a superioridade feminina, quando uma precisa se provar mais sabida que a outra ao ponto de silenciar um lado do discurso.
Todas as vezes que senti medo de uma garota, ou a amedrontei, veio, essencialmente, das minhas próprias inseguranças. Muitas inimigas/vilãs que a mídia investe arduamente são inseguras e descontam seus medos na dita “concorrência”, sem indagar o por quê de fazer isso. É difícil ver a situação por esse ângulo, principalmente quando temos como exemplos “meninas/mulheres malvadas”. Ou cremos que precisamos ser a menina/mulher malvada para “nos garantirmos”.
Como o foco é a TV, vamos falar dessas personagens vilanizadas que são sim maravilhosas. Não há menina/mulher perfeita e elas representam uma nuance da complexidade do sexo feminino.
As vilãs tendem a segurar a trama mil vezes mais que a protagonista e, geralmente, elas passam a mensagem errada quando conversamos sobre sororidade. Pode não parecer nada, mas é fato que várias meninas querem ser a “inimiga” porque “ser a inimiga” passa a sensação de superioridade, de segurança, de autonomia. Só que, além da máscara, a “inimiga” é igualmente e absurdamente insegura, e desconta suas frustrações na dita heroína por estar insatisfeita com algo sobre si mesma.
Quando digo motivos, não faço referência ao papel da vilã em função da storyline – como dominar o mundo ou expurgar a protagonista porque ela é a mais bela de todas. Por ser retratada como o ser irreparável, as antagonistas são um reflexo que alimenta a rivalidade entre mulheres na ficção. Tenso é que muitas de nós achamos essas personagens um máximo, seja por não simpatizar com a protagonista – que é normal – ou porque sim, a inimiga é maravilhosa. Só que absorvemos isso.
Adolescentes absorvem isso e muitas passam a pensar que mulher precisa ser assim.
Mas o que é de fato sororidade?
É fácil dizer o que não é: competir, denegrir, agredir, desrespeitar, julgar outras mulheres. A sororidade é um alicerce, de muitos, do feminismo. É uma palavra que simboliza a irmandade entre meninas e mulheres e que as vê como aliadas e não rivais. Colaboradoras e não competidoras.
Difícil de aceitar a princípio, pois não são atitudes que brotam dentro de nós de uma hora pra outra. Afinal, fomos criadas pelo patriarcado e pelo machismo, que além de desmerecerem o poder feminino, colocam em cheque as relações femininas e as ditam como rivalidade.
Da minha parte, sororidade tem muito de se voltar para si para depois enxergar a outra mulher (e o próximo, independente de quem seja). A partir disso, aceito mais a verdade de que o que me aflige pode ser o mesmo que aflige outras. Que meus medos não me dão passe para denegrir outra mulher, falar mal dela, julgá-la ou diminuí-la.
É de suma importância uma mulher apoiar a outra, compartilhar as mesmas ou diferentes lutas, porque todas se unem para melhorar este mundo para elas mesmas. Como mulheres, precisamos ver umas as outras, reconhecemo-nos como iguais, respeitarmo-nos e compreendermos que mesmo com backgrounds diferentes podemos nos ajudar.
Usando a linguagem da TV: mulheres precisam fazer um crossover na vida de outras para salvar o dia.
O grande conflito é que ainda há essa de sororidade relativa (que, geralmente, reparte os grupos feministas – como o feminismo dito branco) e de superioridade feminina. Ainda há mulheres que continuam a oprimir/silenciar outras mulheres por se acharem mais, digamos, “relevantes”. O que lhe “dá” aval ao desmerecimento daquelas “chamadas” de inferno na terra.
Para a sororidade ser bem-vinda, é preciso desconstruir muitas coisas. O patriarcado e o machismo são bases da educação de várias meninas e mulheres – como eu – e é por meio deles que acreditamos que devemos nos arrumar melhor que ela, sermos mais inteligentes que ela, ter o melhor marido que o dela. O patriarcado e machismo não estão preocupados no talento e na força feminina por isso alimentam a rivalidade. Por isso, a indústria investe em momentos, ideias, plots, subplots, storylines de dar vergonha alheia. Seja na TV ou no cinema.
Inclusive, nas novelas que ainda investem nos moldes Christiane Torloni-dando-tapa-na-inimiga por achar muito quente e cabível duas mulheres se estapearem no horário nobre.
Não dá mais, né?
A sororidade na televisão
A ausência de roteiros que dizem respeito à sororidade não é uma questão exclusiva da TV. É um impasse da vida real. Há mulheres que também são grandes responsáveis pelas desigualdades do próprio gênero, justamente por causa desse pensamento de que dar espaço a outra mulher, promovê-la e/ou pagar mais, é abrir espaço para ser ofuscada. Então, é mais fácil mantê-la em “seu devido lugar” e/ou denegri-la para que continue a saber “aonde é seu lugar”.
Voltando a vilã, o jogo muda quando escritores realmente se preocupam em desenvolvê-la (ou qualquer grupo de personagens femininas) até chegar um timing em que ela reconhece que nem todas as suas atitudes contra a protagonista (ou panelas rivais) são corretas. Um momento que é sempre um divisor de águas, pois há quem diga que a antagonista perdeu a graça ao se tornar “boazinha” (Regina de Once?). Não é bem assim. Há sim quem realmente perde demais ao sair do posto vilanizado, mas outras estão aí para provar o contrário – serve Orange Is the New Black?.
As icônicas mulheres de Sex and The City ensinaram bastante sobre sororidade. O grupo tinha como frase-chave a amizade, dita como a coisa mais importante entre elas. Essas lindas desfilam por NY enquanto combatem os dilemas do cotidiano e as diversas inseguranças femininas. Vez ou outra, uma esbanjava um veneninho dali, outra não perdia a chance de fazer uma piadinha daqui. Contudo, o foco da série sempre foi o relacionamento dessas personagens em uma fase da vida em que as traquinagens de garotas malvadas da adolescência tendem a ser aprimoradas na adulta. Como desejar o mesmo o homem, motivo que sempre gera caos, separações, difamação, etc..
No final do dia, elas se escolhiam acima de qualquer problema. Elas não tornaram a competição o modo de operação do grupo. Nem brigas por popularidade. Nem engoliram intrigas de “uma ser melhor que a outra”. A relação delas foi solidificada no respeito ao mesmo tempo em que descobriam seus papéis como mulher na nossa famosa sociedade que não “reconhece” amizade feminina ou a importância da mulher em cargos influentes.
Girlfriends também deu sua lição de sororidade. A série tinha os moldes de Sex and The City, mas centralizava o cotidiano de mulheres negras em Los Angeles. Elas também eram bem-sucedidas, lidavam e driblavam as diferenças entre amigas, mas sempre relembravam o quanto o que tinham era mais importante que qualquer empecilho. Inclusive, o quanto é importante mulheres negras empoderar umas as outras – informação sempre dada em meio a incontáveis brigas.
Colaboração. Respeito. Empoderamento. Três palavras que representam o core do que é sororidade e do quanto ela é necessária no convívio entre meninas e mulheres. Não só isso, como estar presente naquilo que consumimos praticamente todos os dias – séries, livres, filmes e afins.
Inserir uma dose de sororidade em uma série não é tão difícil quanto investir na representatividade feminina. Porém, da mesma forma que a indústria do entretenimento ainda acredita que mulheres brancas são mais rentáveis, o mesmo pensamento se aplica sobre mulheres como inimigas. Vê-las brigando, se odiando, fazendo loucuras para se destacarem uma das outras são detalhes mais interessantes que trabalhar esse “ódio” para depois dissolvê-lo.
Infelizmente, ainda há essa perspectiva de que inimizade feminina é mais interessante, mas muito se esquece do público-alvo que chega a absorver tais comportamentos como se fosse uma verdade universal. E não é.
A sociedade alimenta esse ódio entre meninas e mulheres. O entretenimento também. Ambos investem pesado na tese de competição/rivalidade feminina. Ao verem isso na mídia, muitas acham que esse comportamento é imutável de uma mulher para com a outra, principalmente quando colocamos nos holofotes as adolescentes que, literalmente, ingerem o que veem.
Um grande exemplo é Blair e Serena de Gossip Girl – e as seguidoras de cada uma. Elas acordavam supercedo por causa da cobrança de estar mais perfeitas que a outra. Na escola! Um conflito interessante quando pensamos em Pretty Little Liars, lugar em que a sororidade é berrante.
Lá em Upper East Side, todas arrumavam o cabelo e checavam as roupas umas mil vezes para fugir da desvalorização que aguentariam por não estarem impecáveis. Nada era dito sobre o talento delas, mas da aparência. Era uma cobrança extrema que serviu de gatilho para problemas pessoais, como Blair que sofria com um distúrbio alimentar. Ninguém lembra disso!
O distúrbio não foi unicamente desenvolvido por causa da competição com Serena. Blair era muito insegura, especialmente quando estava diante da sua dita rival – o que a fazia se provar. Para não se voltar para si, a personagem mediava momentos embaraçosos contra as meninas do seu grupo só para manter sua posição de Queen. Só para continuar a ser temida e para garantir que van der Woodsen não pediria seu impeachment. Comportamentos que um dia vivemos, provocamos ou saímos pela tangente na adolescência. Uma fase complicadíssima para qualquer garota.
Embora Gossip Girl não tenha explorado os resultados dessa competição, é muito fácil contar nos dedos as consequências. Baixa autoestima, o já citado distúrbio alimentar, automutilação e paro por aqui porque a lista é enorme. Waldorf se via constantemente ameaçada pela presença de Serena que, em sua mente, era a mais querida, a mais amada e a mais desejada. Ela não deixou que muitas pessoas realmente a conhecessem por estar no looping popularidade. Quando finalmente a vemos mudar é em nome da vida adulta e continuamos a amá-la por haver evolução.
O mesmo se vê em My Mad Fat Diary, que nos leva a conhecer Ray e Chloe, famosas pela amizade conturbada de vários episódios (que dava ódio, inclusive). Ray sentia que não se encaixava e tudo piorava por causa dos seus problemas de autoimagem que, consequentemente, afetou sua saúde mental. Só que ela começou a ter destaque, por, muitas vezes, ser ela mesma e ser “um dos garotos”, algo que incomodou Chloe que deixou de ser um porto seguro para ser a competidora.
As atitudes negativas de Chloe instigaram Ray a retribuir o favor. Houve situações imperdoáveis da parte de Chloe e até mesmo de Ray, mas torcemos para que ambas mudem. E elas mudam.
My Mad Fat Diary é muito verossímil por enfatizar o quanto plantamos e colhemos nossos piores medos na adolescência. Todos os erros de Ray e de Chloe são relacionáveis, porque, ao menos uma vez, fizemos o mesmo que essas personagens. Não há glamour nessa série, rios de dinheiro e festas de elite para reafirmar status. São meninas reais, com medos reais.
Chloe e Ray são/agem como qualquer garota da mesma idade. Ambas simbolizam o desejo de sobreviver em uma fase da vida que não temos muitas coisas. Principalmente identidade. Maravilhosamente, ambas se superam, sem sofrerem uma descaracterização.
E é isso o que a maioria de nós quer: evolução de personagem feminina, seja da protagonista ou da antagonista. Principalmente quando a proposta inicial é “duas garotas que se odeiam…”.
Sororidade é importante sim!
Além de ver meninas e mulheres como irmãs, sororidade dá a mão ao empoderamento. Mulheres deixam de competir para colaborar entre si. É aí que histórias começam a ser compartilhadas, desde experiências embaraçosas até as mais traumáticas. Por meio dessa palavrinha, cada uma vê que não está sozinha. Que há outras mulheres que passam pelo mesmo ou por algo pior.
Com a sororidade, notamos que nossas diferenças não são um problema, mas um benefício para nos enaltecermos e para apoiarmos outras mulheres que se encolhem por medo, sofrem com as desigualdades e se calam diante do abuso. Sororidade quer uma mulher ajudando a outra, não importa o status social ou a cor da pele, detalhes vistos em Orange Is the New Black.
Orange Is the New Black não é apenas uma série protagonizada por mulheres. Ela é uma bênção televisiva por trabalhar 4 itens essenciais: protagonismo, representatividade, empoderamento e sororidade. Uma série completamente feminista que não só desenvolve a convivência entre as presidiárias, mas também a complexidade de cada uma delas, sejam brancas, negras, latinas, transexuais, lésbicas, bissexuais ou heterossexuais. Além disso, as personagens possuem histórias relacionáveis (e individuais), que vão desde sacrifícios pela família, o desespero para pertencer ou se apaixonar pela pessoa errada. Tudo isso sem se esquecer de que a mulher é multifacetada.
A lição maior de Orange é: nada se ganha quando uma se vira contra a outra.
Mas nem todos os roteiristas pensam assim ainda. Quando há mulheres em cena, só se cogita a inveja, a competição e a rivalidade. Ok ter isso, mas o que se pode colher de aprendizado? Mantê-las inimigas por motivos fúteis ou torná-las parceiras como Burgess e Lindsay de Chicago P.D.?
Está aí outro exemplo maravilhoso, e recente, de sororidade. Burgess descobriu uma situação suspeita que rendeu um caso para a Unidade de Voight. Lindsay achou válido chamá-la para contribuir na investigação, algo que “não aconteceria porque a colega é da patrulha e não uma detetive”.
Burgess foi empoderada e, de quebra, contou com a sororidade de Lindsay, uma mulher com um posto acima ao dela. Motivo mais que suficiente para ser ignorada e, talvez, ser vista como a ameaça por ter encontrado o job do dia. Ambas foram parceiras por um episódio, 40 minutos mais que suficientes para as fãs da série pirarem, o que me fez lembrar o quanto essa colaboração e esse elevar de autoestima faltam na televisão.
Sim, mulheres ora se dão bem ora não conseguem olhar uma para a face da outra. Isso é normal e, talvez, incorrigível por não ser um estranhamento exclusivo do sexo feminino. Vemos pessoas todos os dias e sempre há alguém que não vamos com a cara, simples assim. Só que não é motivo para as picuinhas, não importa o sexo. É possível sim quebrar as atitudes negativas de mulher para mulher. E é fato que precisamos de mais exemplos de mulheres dando a mão pra outra.
A mídia alimenta essa competitividade porque precisa dela para ter retorno financeiro. O mesmo pensamento para mulheres hiperssexualizadas/objetificadas que vêm com falso rótulo de empoderamento. O mesmo no romantizar do abusador e no falso protagonismo feminino que se perde quando ela se apaixona e o homem lhe toma os holofotes para dar aval ao romance. Ainda há discrepâncias e para eliminá-las é preciso pensar fora da caixinha.
Fato é que o público feminino atual quer personagens femininas comandando as próprias séries e o mesmo vale para a sororidade/empoderamento. Orange is The New Black é um sucesso. Burgess e Lindsay são um sucesso – e nem se conheciam há anos para decidirem apoiar uma a outra.
Sororidade não pede que você conheça uma mulher há anos. Sororidade pede que você esteja lá por qualquer uma delas. É empatia pura! Quando meninas e mulheres se apoiam, há progresso. Quando vemos sororidade na TV, ou em qualquer outra coisa que amamos, vemos possibilidades.
Por isso, é importante ter protagonistas, antagonistas ou panelas enormes de mulheres para que o tema sororidade seja desenvolvido. Brigas são normais. Discussões também. Aquele “ódio” inicial, totalmente normal também. Porém, é como as personagens reagem a toda adversidade que causa o impacto. Isso pode não só mudar a vida dela, mas a da “rival” também.
E o mesmo se aplica a nós. Como disse, somos multifacetadas e a TV precisa explorar mais isso para que temas relevantes sejam trabalhados ao longo de uns bons longos episódios. Da mesma forma que muitas de nós não quer mais personagens femininas unicamente como aliadas do homem, o mesmo vale para relações inspiradas (e saturadas) pela dita rivalidade feminina.
PS: se você ainda acha que sororidade não é possível, vem cá conferir esse post de séries empoderadoras.